quinta-feira, 4 de março de 2010

Símbolos travestidos


E é quando a dor bate a porta e se esgotam os recursos da técnica que nas pessoas acordam os videntes, os exorcistas, os mágicos, os curadores, os benzedores, os sacerdotes, os poetas, aquele que reza e suplica sem saber direito a quem...
E surgem então as perguntas sobre o sentido da vida e da morte, perguntas das horas de insônia e diante do espelho...O que ocorre com freqüência é que as mesmas perguntas religiosas do passado se articulam agora, travestidos por meio de símbolos secularizados.
Metamorfoseiam-se os nomes. Persiste a mesma força religiosa. Promessas terapêuticas de paz individual, de harmonia íntima, de liberação da angústia, esperanças de ordem sociais fraternas e justas, de resolução das lutas entre os homens e de harmonia com a natureza, por mais disfarçadas que estejam nas máscaras do jargão psicanalítico/ psicológico, ou da linguagem da sociologia, da política e da economia, serão sempre expressões dos problemas individuais e sociais em torno das quais foram tecidas as teias religiosas. Se isto for verdade, seremos forçados a concluir não que o nosso mundo se secularizou, mas antes que os deuses e esperanças ganharam novos nomes e novos rótulos, e os seus sacerdotes e profetas novas roupas, novos lugares e novos empregos.

Por Rubem Alves.

Com o triunfo da burguesia Deus passou a ter problemas habitacionais crônicos. Despejado de um lugar, despejado de outro... Progressivamente foi empurrado para fora do mundo. Para que os homens dominem a Terra, é necessário que Deus seja confinado aos céus.
Por Rickert.

Não existe religião alguma que seja falsa. Todas elas respondem, de formas diferentes, as condições dadas da existência humana.
Por E. Durkheim.

Aos fiéis pouco importa que suas idéias sejam corretas ou não. A essência da religião não é idéia, mas força. O fiél que entrou em comunhão com o seu Deus não é meramente um homem que vê novas verdades que o descrente ignora. Ele se tornou mais forte. Ele sente, dentro de si, mais força, seja para suportar os sofrimentos da existência, seja para vencê-los.
O sagrado não é um círculo de saber, mas um círculo de força.
Por E. Durkheim.

O sofrimento religioso é, ao mesmo tempo, expressão de um sofrimento real e protesto contra um sofrimento real. Suspiro da criatura oprimida, coração de um mundo sem coração, espírito de uma situação sem espírito: a religião é o ópio do povo.
Por Karl Max.

Ópio do povo? Pode ser, mas não aqui. Em meio a mártires e profetas, Deus é o protesto e o poder os oprimidos.
Por Rubem Alves.

O reino do céu é um estado de espírito não algo que virá “além do mundo” ou “depois da morte”. Toda a idéia de morte natural está além dos evangelhos, a morte não é uma ponte, uma mensagem, está ausente porque pertence a um mundo de todo diferente, meramente aparente, interessante apenas como um símbolo. A hora da nossa morte não é uma idéia cristã, “horas”, tempo, a vida física e as crises não existem para o portador da boa nova...
O reino do céu não é algo que os homens devam esperar, ele não tem ontem, nem depois de amanhã, não chegará a um milênio, é uma experiência do coração, está em toda parte, e não está em parte alguma.
Por Friedrich W. Nietzsche.

Tirai uma idéia e colocai nela uma legítima realidade, e todo o cristianismo desmoronará, arruinado.
Por Friedrich W. Nietzsche.

Inicialmente, a dimensão de transcendência não tem nada a ver com as religiões, embora elas procurem monopolizar a transcendência.
Por Leonardo Boff.


terça-feira, 2 de março de 2010

Lutero, Erasmo e a reconciliação dos cristãos




Religião e Dinheiro misturados, em qualquer lugar ou época, sempre inspiraram suspeita ou provocaram confusão. E não sem motivo, pois a Religião associa-se às coisas do espirito, à fé e à pureza, enquanto que o sonante é emparelhado ao mundo da materialidade, da avareza e da corrupção. Jesus Cristo, como é sabido, desconfiava da presença das moedas nos campos da fé. Ainda quando ele aconselhou a um jovem abastado a desfazer-se dos bens em favor dos pobres, mesmo assim acreditava ser mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico alcançar o Reino de Deus (Mateus, 19). Para ele, quem tinha muito dinheiro era irrecuperável.
Cristo e Lutero

Lutero na Dieta de Worms, enfrenta o imperador Carlos V(1521) O Galileu redobrou sua posição em manter a fé longe do mundo argentário quando, num célebre episódio, expulsou os comerciantes que mercadejavam nas cercanias do Templo em Jerusalém e, em seguida, em resposta a uns fariseus e herodianos que lhe inquiram sobre a legitimidade dos imposto exigido pelos romanos, ao mostrar-lhes um denário com a face do imperador, conclamou-os, afastando-o de si, que o devolvessem: “a César o que é de César, e o que é de Deus, a Deus” (Mateus,22). Martim Lutero, quinze séculos depois, de certo modo, seguiu-lhe nos ensinamentos. O rude monge alemão que se tornara doutor em teologia, mais de mil e quinhentos anos depois desses episódios relatados no Novo Testamento, não vira mal nenhum em rejeitar veementemente a comercialização de indulgências que estava sendo praticada por quase toda a Alemanha com a autorização papal. Quando o padre Tetzel, um representante do arcebispo Albert de Brandeburgo e do Banco Fugger, aproximou-se das propriedades de Frederico o sábio, o príncipe-eleitor da Saxônia e suserano do doutor, visando o escuso e nefando negócio de perdoar os pecados em troca de dinheiro, Lutero foi a luta. Sentiu-se no papel de Cristo empunhando um cajado contra os vendilhões do Templo, no caso Tetzel e a quem representava. Ao afixar no dia 31 de outubro de 1517, nas portas da igreja do Castelo de Wittemberg, em Augsburg, suas “95 teses” atacando a Igreja Romana, o monge alemão provocou o maior cisma na história da Cristandade Ocidental. O argumento central de Lutero, de raiz paulina, era simplíssimo. Ninguém estava autorizado na Terra, nem padre nem papa, a salvar fosse quem fosse. A salvação era um atributo exclusivo de Deus. Nem mesmo as boas ações adiantavam. Sequer gordas esmolas ou confissões arrependidas. Como poderia o Onipotente, policiando um universo infinito, levar em conta os gestos de caridade ou sincera constrição de um ou outro dos crentes? Logo, traficar perdão em nome de Deus era, no mínimo, obsceno.
Erasmo sugere a reconciliação

Desiderius Erasmus em 1523 O Papado, porém, reagiu a Lutero como faria um chefe de corporação ofendido em seus privilégios. Em 1520, Leão X, um descendente dos Medici (um glutão, de quem Voltaire disse “ter Deus no estômago...e o dinheiro extorquido das indulgências nos seus cofres e nos da sua irmã”), expediu uma bula excomungando-o. Foi o início do desastre para a unidade cristã. Ao ter a Cúria permitido, ao longo dos séculos, que a Igreja-estado mantivesse ligações incestuosas com o Dinheiro, fez por contribuir para que parte considerável da sua imensa construção medieval, estocada por Lutero, ruísse para nunca mais se compor. Erasmo de Rotterdam, o grande humanista que se antecipara a Lutero em suas críticas ao Papado (*), ainda tentou uma apaziguação entre as partes cada vez mais hostis apostando numa reforma do clero pela brandura, aconselhando Roma a que não levantasse o báculo em guerra contra Lutero. Aquela altura porém, por detrás do monge doutor vibrava indignada uma Alemanha quase que inteira em pé de guerra, furiosa contra o Pontífice de Roma. Nos decênios seguintes à insubmissão de Lutero, protestantes e católicos ensangüentaram a Europa com suas guerras a pretexto da fé. Todavia, mais recentemente, aproveitando-se do clima geral de concórdia existente na Cristandade por ocasião da passagem do Jubileu de Cristo, Católicos e Luteranos, após cinco séculos de turras e troca de desaforos, decidiram reconciliar-se assinando na mesma Augsburg, o epicentro da vulcânica reforma de 1517, a Declaração Conjunta Sobre a Doutrina da Justificação, harmonizando suas concepções sobre a Salvação, uma das causas teológicas de toda a discórdia anterior. É uma homenagem tardia a Erasmo. Porque não o ouviram então?
(*) “O povo corre para as igrejas como a um teatro para divertir-se. Então é preciso levantar-se dinheiro para o grande tributo do órgão, por manter multidão de meninos...Neste meio tempo nada de bom é ensinado.”Erasmo – “..ad veram Theologiam”, 1519


Por Voltaire Schilling.