terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Ao início pelo fim


De resto, o que importa todas as misérias do passado? Naquela primeira alegria do regresso à vida, tudo, até seu crime, até a sua condenação e a sua deportação para Sibéria, tudo lha parecia como um fato exterior, estranho; parecia atém duvidar que isso tivesse realmente acontecido. Aliá, naquela noite ele não conseguia refletir por muito tempo, fixar o pensamento em um objeto qualquer, nem conseguiria resolver conscientemente qualquer questão que fosse; só conseguia sentir. No lugar da dialética surgira a vida, e na consciência devia elaborar-se algo inteiramente diferente.

Debaixo do travesseiro ele tinha o evangelho. Pegou-o maquinalmente.Aquele livro pertencia a ela, fora naquele mesmo volume que lhe havia lido outrora a passagem da ressurreição de Lázaro. No principio da sua vida de prisioneiro, ele esperava que ela haveria de importuná-lo com religião, que vira constantemente se pôr a falar sobre o Evangelho. Mas, para seu espanto, nem uma única vez ela fez derivar a conversa para esse assunto, nem ma única vez lhe sugeriu o Evangelho. Fora ele próprio que lho pedir pouco tempo antes de sua doença, e ela levou-lhe sem dizer palavra. Até então ele não o tinha aberto. Tampouco o abriu dessa vez, mas um pensamento atravessou-lhe rapidamente o espírito: “ Poderia agora as suas convicções ser diferentes das minhas? Poderei eu ter outros sentimentos, outras aspirações que não seja as dela?...” Durante esse dia, Sônia estava também, muito agitada, e à noite chegou até a voltar a ficar doente. Mas estava feliz, que quase sentia medo daquela felicidade. Sete anos, somente sete anos! Nas primeiras horas da sua felicidade, pouco faltou para que ambos considerassem esses sete anos como sete dias. Ele em mesmo sabia que a nova vida não lhe seria de graça, que tinha de adquiri-la a custo de longos e dolorosos esforços, que teria de pagar por ela com uma grande realização no futuro.

Mas aqui começa uma outra história, a da gradual renovação de um homem, da sua regeneração paulatina, da sua passagem progressiva de um mundo para o outro, do seu conhecimento de uma realidade nova, inteiramente ignorada até aquele momento. Poderia ser a miséria de uma nova narrativa-mas esta que vínhamos narrando termina aqui.

Por Fyodor Dostoiévski ( Crime e Castigo )

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Quem sou eu


Minha condição humana me fascina. Ignoro por que estou na Terra, mas às vezes pressinto. Sou o concreto e o abstrato.
Reconheço que sou o concreto de minha existência quando observo homens se diferenciarem pelas classes sociais; partidos políticos elaborarem leis unilaterais; governo aumentar impostos para compensar gastos irrisórios; autoridades regatearem verba para educação e a humanidade se apaixonar pela riqueza material como única finalidade de vida.
Em contrapartida, sou o abstrato da sabedoria para garantir o uso do conhecimento acumulado no passado aplicado no descobrimento da minha presença aqui; para perceber novos caminhos e alternativas não traçadas na viagem; para interagir com discentes, proporcionando situações que envolvam observação, comparação, valoração, decisão, autonomia e transformação da realidade uma vez que os indivíduos não são presenças neutras na história.
Logo, sou o concreto no social e histórico e o abstrato quando valorizo a importância da luta esperançosa de transformação do mundo a partir de uma intervenção que não adere nem se adapta, mas analisa e modifica.

Sandra Valéria Walchhutter ( Professora de Português da Etec Jorge Street )

Somos todos seres desejantes


Somos todos seres desejantes, Talvez o desejo seja a nossa experiência mais imediata e, ao mesmo tempo, mais profunda. Coisa que já Aristóteles vira e que Freud colocou como eixo fundamental para entender o motor humano.

A nossa estrutura de base é o desejo. E faz parte da dinâmica do desejo não ter limites. Não desejamos só isso e aquilo. Desejamos tudo. Não queremos só viver muito, queremos viver sempre. Desejamos a imortalidade. E nos frustramos, porque o princípio da realidade nos mostra que somos mortais. Vamos morrendo devagarzinho , em prestação, cada dia, até acabarmos de morrer. Mas o nosso desejo é sempre virgem, sempre quer viver mais, quer prolongar o tempo, quer transcender a morte. A grande chave da pseudo-transcendência é manipular nossa estrutura de desejo, é canalizar toda nossa potencialidade de desejo para uma coisa limitada e identificar essa coisa com o totalidade da realidade. É então que nos frustramos, porque o desejo quer o todo e só alcançamos a parte.

A propaganda do cigarro Marlboro é como um sacramento da igreja Católica que age ex opere operato – age por si mesmo, automaticamente. Quem fuma Marlboro, nos prega o marketing, tem as mulheres mais esplêndidas, dirige uma Ferrari luzidia, desfila por paisagens soberbas. Basta fumar Marlboro para ter essas experiências, assim como as paisagens belíssimas, existem só no imaginário. Não produzem nada, fornecem apenas uma ilusão e manipulam nossos sentimentos. Mas o grave é isso, que permitem a ilusão da realização do desejo infinito identificado com um objeto finito. Devemos passar por todos esses objetos, dizendo fundamentalmente: “ O obscuro objeto do desejo humano não é este ou aquele ser, esta ou aquela realidade. Não é um automóvel, não é uma mulher esplêndida, não é escrever um livro, não é fazer teatro, não é ser isso ou aquilo. É mergulhar no ser, captar a nossa sintonia com a totalidade, é sentir que somos chamados ao ser pleno, e não ao pedaço do ser.”

Vivemos no finito. Tudo o que tocamos é limitado. Mas o desejo é infinito, é ilimitado. Então, para sermos fiéis aos apelos de nossa interioridade, é preciso manter essa abertura infinita. Quando confundimos essa realidade parcial com a totalidade da realidade, vem a ilusão do fetiche, a ilusão do endeusamento, da idolatria, dos falsos deuses.

Leonardo Boff ( Tempo de transcendência )

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Auto-engano


Minha mãe sempre repetia, antes só do que mau acompanhado, a bíblia ensina-me''aquele que se isola busca seu próprio interesse”, no decorrer da vida percebi que minha mãe não estava errada, nem a bíblia.


Algumas companhias não eram boas, mesmo sendo uma pessoa livre de opinião, sempre existia aquela pressão, o comportamento adequado para pertencer ao grupo. Me afastei conscientemente das influências que derrapavam em si mesmas, sem o prévio conhecimento bíblico certifiquei-me posteriormente que estava impregnado do meu próprio interesse, até ai normal pois buscava melhoria de vida, e essa melhoria estava muito além daquele grupo que tinha interesses antagônicos aos meus, passei a andar só, não sozinho, mas só nos ideais.


Passado alguns anos tive alguns contatos esporádicos com aqueles antigos amigos, alguns vivos outros mortos, alguns iguais outros diferentes, mas ainda tínhamos laços de amizade, algumas idéias, ou resto de semelhanças. Convertido ao cristianismo e servindo ignorantemente a um pastor e a uma igreja medíocre de sensibilidades, tornei- me mais um anjo da insensibilidade, como uma lixa áspera lixava e nem me lixava para ninguém, meu umbigo era a região mais longe em que realmente depositava preocupação, alcancei níveis de espiritualidade que exploravam mais a imaginação do que a realidade, obtive reconhecimento dentre os irmãos por falar constantemente em línguas estranhas, pois sutilmente fui ensinado que quem assim procedesse teria destaque na igreja como pessoa abençoada, iluminada, inspirada e espiritualizada.


Era uma ilusão enraizada e permanente nas tradições evangélicas o falar em línguas, as performances no púlpito, as pregações subjetivas que claramente só lançava mais trevas sobre quem as ouvia, as orações com interesses de vaidade pessoal, as manobras sócio-políticas, a gravata, o terno, o carro cheirando a perfume celestial, o dízimo que estufava o envelope, a frequência no culto e a pontualidade eram sinônimos de pontuação e de ganho no currículo espiritual e contribuíam para sofisticar minha performance como membro elevado nessa organização religiosa.


É um ambiente neurotizante, que transfere sua neurose para os desavisados, importa uma teologia americana de riqueza e propriedade como forma de prosperidade, padronizando em termos mercantilistas toda sua liturgia, acentuando que, as melhores virtudes são: compromisso, contribuição, responsabilidade, constância nos programas e eventos de arrecadação, e tudo isso não puramente, mas sempre girando em torno da igreja, do pastor e da placa que fica sobre suas portas, e costas.


Os evangélicos e suas igrejas, são ou se tornaram hoje, a universal ilusão descrita por Nieztsche, o novo testamento é o seu pior pesadelo como disse Kierkegaard, e a pedra de tropeço é o próprio Jesus.


Supersticiosos, anônimos nas causas sociais, avarentos, racistas, autores do desmantelamento familiar, quando mulheres e crianças, adolescentes e jovens sufocam agonizando na doutrina do: mantenham-se longe do mundo, indiscretos, torturadores da vida quando afogam o livre pensar e o bom senso nas águas mórbidas da clausura existêncial, alegram-se com todos os bancos e cadeiras, com a extenção do templo, com o som amplificado, com o microfone shure sem fio, com a soma mensal que sumarizam suas reais intenções, expulsam o pecador hediondo, criam metas numéricas nos atos de evangelização, suprimem a fraqueza daqueles que se confessam inadequados para esses mecanismos, arquitetam o testemunho mais convincente e comovente, é um auto nível de um auto-engano, e quando pessoas se sentem incomodadas com esse sistema, os rótulos são: doentes, traumáticos que não sabem viver, insubmissos e possessos que não entendem nada.


Não defendo os sem igreja, mas vejo que eles não estão errados, pois pertencer a uma igreja desconfiando que a relação com o novo testamento é só teórico, e mais, teorias totalmente incompatíveis com a realidade, não é de admirar sua insatisfação. Não são doentes, não na concepção que pastores os vêem, mas sua doença é a angústia em ver destorcida a verdade do evangelho, por isso andam só, não sozinhos, mas só nos ideais.


Ao pensarem que estão sozinhos, enganam-se, ao pensarem que estão buscando o próprio interesse também enganam-se, pois o futuro da igreja institucional é esse mesmo, sua irrelevância.

Não estão só os desiludidos com a igreja institucional, e não buscam seu próprio interesse afastando-se dela.

João Neto.

Uma nova natureza


Ora essa! Todos desfrutamos um lugar comum, pouco mais e um pouco menos que o estado natural congênito. Poucos fogem de Alcatrás, pau que nasce torto morre torto, ou torturado a pauladas, mas isso agora não convém.


Convenhamos, nossas semelhanças são muitas e evidentes, até aquelas que nunca são expostas revelam o tamanho da igualdade, e eu não pensava assim, outrora ingênuo cria piamente nas diferenças, nos santos, nos super espirituais, e no inverso também. Ingenuidade.

Observo a mim e os outros, os outros e os outros e percebo que somos todos purê de uma mesma batata.


O profano não é mais profano que o santo, o santo não é mais santo que o profano, aqui está o paradoxo, ou algo assim, não há diferentes mas apenas rótulos, há quem se convença da santidade, e nesse convencimento as máscaras são as mesmas, bom mocismo e orgulho exacerbado, dito isso, conclamo sua atenção para dentro de você mesmo, e lhe faço essa pergunta, você é santo? Ou, você se considera diferente dos outros? Ou, qual o sentido da vida e da morte?

Paro nessas.


Creio estar sendo intruso, mas essa é a intenção, trazer à superfície o que está por baixo, nas águas plácidas do auto- engano, na febre universal que produz delírios e obsessões, uns a chamam de ilusão, outros de ópio do povo, outros de muleta de aleijado.


Já concebi como disse acima, a idéia de um ser especial, sem carne, só espirito, só bons interesses, com extrema vocação angelical, acima dos mortais, cem porcento limpo, casto e íntegro.

Certamente equivocado, entrei em conferência com a malícia, que com uma voz sedutora e firme disse-me: ''abra os olhos, seu tolo!”.

Confesso minha surpresa e teimosia em aceitar a novidade.


Trilhando a jornada da vida com seus sabores e dissabores cheguei até aqui, concluindo o seguinte: ''se correr o bicho pega se ficar o bicho come” , os homens correm, os homens ficam, mas o bicho permanece como neurose, preferindo suas carnes.

Que a esperança seja fazer parte de uma outra natureza.

João Neto